Entre muros
 



Contos

Entre muros

Jacira Fagundes




Entre muros


Vai passar! - A mãe falava, repetindo e escandindo as sílabas, bem junto ao ouvido da criança.
Não. Não haveria de passar. A menina recuava, secava as lágrimas com as costas das mãos endurecidas, invadida por uma sensação de extrema tristeza, de decepção, de surpresa e medo.
Encarava a mãe. Esta não chorava. Talvez sequer lamentasse, ou, quem sabe, preferisse ignorar aquilo que os próprios olhos a haviam surpreendido. Ou nem tanto, porque seria bem provável que já estivesse à espera.
A menina segurava o sentimento que insistia em tomar espaço maior do que o corpo franzino e doído, machucado. Não sentia raiva, era algo muito maior - ódio, sim, era ódio. E nojo. Nojo da mãe, nojo do padrasto que um dia substituíra o pai de verdade - tão ausente.
À medida que fedia feito bicho, sentia a queimação vinda do interior a lhe tomar a virilha por inteiro, como brasa. Precisava entender. Mas não conseguia. E parecia não ser urgente entender o que era aquela coisa nojenta que escorria pelas suas pernas magras.
A mãe cessava de lhe afagar os cabelos. Os ouvidos voltavam atentos ao barulho da porta que se abria e se fechava com brutalidade.
Seria assim o futuro? Rebelar-se? Acomodar-se?
Não tivera coragem, nunca teve, ela própria uma criança aos onze anos de idade. E não fora o padrasto, o primeiro. Fora o irmão mais velho que costumava lhe afagar os cabelos até que dormisse. E depois deitava a seu lado, e o sono era tão acolhedor, tão pleno de carícias...
A mãe não percebia nada ao acordar. E ela, a filha caçula, permanecia quieta, num canto.
Costumava ficar assim em outras ocasiões: quando algo indesejado chegava aos seus ouvidos, palavras feias, ofensas, gritos. Preferia a quietude, o silêncio, o afagar da gata que parecia entendê-la mais do que os de casa. Sentia dó da gata. Sabia do desaparecimento por vezes, da fuga para encontrar esconderijo e fazer nascerem-lhe as crias. Depois, com alívio, a via voltar, num miado fraco, envergonhada por tê-las abandonado à própria sorte. Também apreciava as imagens que olhava nas revistas: roupas de festas, casais abraçados, tudo tão bonito. Era como se lhe coubesse viver, por minutos, histórias encantadas, no longe, no bem longe dali.
Quando o pai sumiu pela última vez, aí quem tentava assedia-la era o padrasto. Homem forte, grande e astucioso. Porém, havia um componente que o impedia de consumar qualquer atitude que o comprometesse - a mulher. Por cuidado, por instinto ou por ciúmes, a mãe sempre mantivera as filhas longe dos olhares obscenos do seu homem. O que resultara
em cuidados extremos.
Precisava encontrar força para tornar à vida adulta - mulher feita, mãe, plena de compromissos. Então ergueu a filha num abraço e guiou-a até o banheiro. Abriu a torneira do chuveiro, despiu-a e ajudou-a a livrar-se da imundície. Só então permitiu que o pranto chegasse livre, alto e forte como um grito de desespero.
Depois viera o desalento, a fadiga, e por fim, sim, como era de costume, a prudência.
Agora, a mãe já se desvencilhava das próprias vestes e entrava no box. Abraçadas sob a água tépida e, enfim, fortificadas, as duas riam e brincavam entre os jorros simultâneos. Alguma confiança voltava a se instalar.
Depois sairiam do chuveiro em direção ao quarto comum. Vestiriam roupas limpas. A mãe, na cozinha, prepararia a refeição. O facão, de bom uso, afiado, a cortar os temperos em tirinhas absolutamente iguais em largura e comprimento. Assim como o guisado, por vezes os bifes, suculentos, macios, saborosos, deixando escorrer um filete sanguinolento que se misturaria ao branco do arroz.
Depois, o almoço servido à mesa. O silêncio a dominar o ambiente. Apenas o barulho do roçar de dentes. E o ruído dos cortes na carne, entregue ao fio das facas. Olhares brandos fixos nos pratos, momento impróprio a futilidades. Dispensavam - se as falas, mesmo as de desentendimento ou de acusações. O mundo poderia desabar. Por freio, a cautela. Sem o peso do infortúnio.
Mais tarde, bem mais tarde, se entregariam ao sono reparador. Ou, talvez, nem chegasse a tanto. Sempre haveria uma possibilidade para o facão de cozinha prestar-se, momentaneamente, a cortes de carnes ainda mais resistentes e compactas. Não seria a primeira vez que a mãe, antes de deitar, o ajeitasse, com todo cuidado, embaixo do colchão, o cabo bem ao alcance da mão. Fazia algum tempo que era mantida tal providência noturna.
Um dia ela teria a coragem necessária. E haveria a derrubada dos muros.
Eram, afinal, duas mulheres. E fortes.

















 

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